Porcolitro

Porcolitro era um leite muito safadinho, derramava sempre. Os outros litros falavam para ele: cuidado, você vai acabar sujando tudo. Mas o litro não estava nem aí, todo dia fazendo a mesma coisa. Até que um dia veio uma fada e transformou o litro em porco, num porcolitro, que protagonizou mil aventuras...



Créditos das aventuras de Porcolitro: Milton Nascimento e Maria Dolores Duarte.
As aventuras a seguir são por minha conta.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Consciência negra através do espelho

Então o saguão da minha escola se redecorou para a semana da consciência negra.
Trabalhos dos alunos - grande parte deles moradora das periferias cubatenses - pendurados nas paredes, fixados nos murais, teto, chão... Traziam fotos de grandes personalidades negras, legendadas pelas frases "respeitem o negro", "o negro também é capaz", "os brancos devem respeitar os negros",  etc.

Olho para meus alunos, quase todos quase pretos. Pergunto:

- Por que vocês acham que existe esta semana, a da Consciência Negra?
- Porque muitas pessoas tem preconceito com os negros, professora.
- Quem são estes negros que sofrem preconceito?
(silêncio constrangedor de um lado, risos engraçadinhos do outro)
- Professora, a gente não pode falar sobre isso na classe, senão começa a ter briga.
 (...)

Continuo empenhada em descobrir quem é este negro, vítima do preconceito, alvo da campanha. Não o encontro. "O negro" sempre está lá, na terceira pessoa, existe, mas não é ninguém. Um negro virtual a quem a escola mobilizou esforços em uma semana sem sentido.

Passo para o lado de cá. Os professores, quase todos quase brancos. Os mesmos que querem combater o bullying e a violência na escola, mas desejam com paixão desenfreada que uma boa surra ensine uma lição aos playboyzinhos da USP. Os mesmos que dizem que "os pretos que levam o Brasil pra frente são o café e o petróleo". Os que qualificam negros como morenos, escurinhos. De novo, ninguém tem nada a ver com aquilo. 

Avalio então, a abordagem historiográfica. Impessoalidade. O tráfico "de negros", a escravidão "dos negros", a liberdade "dos negros". Quem são estes negros? Nossos avós, bisavós, tataravós? Seres humanos? Brasileiros?
Nada! São uns negros lá. Mas não aqui. 

O saguão da escola permanece decorado. Nele, vejo apelos anti-racistas, vejo o Tim Maia e a Taís Araújo. Mas não me vejo lá. Ninguém se vê.
O hall da escola está decorado, mas a Semana da Consciência Negra passou em branco, inconsciente.
Deve ser porque o Haiti não é aqui.







sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Mudar o mundo

Revoluções não nascem em um dia. Engendram-se das contradições das próprias estruturas, corroem-nas, explodem-nas, ou não: implodem-nas e diluem-nas em outra coisa, outra estrutura ou várias delas.
Se pudéssemos estabelecer ao menos uma lei social, seria esta: sociedades são sempre dinâmicas. Dinâmicas e (des)governadas por ideologias, poder, tradições, mas também por insurreições, rebeldias, cataclismos. 
Não existe tal coisa qual a sociedade fóssil, tampouco a ideologia perene. 
Buscar e entender permanências em detrimento de rupturas pode ter se tornado um instrumento analítico eficaz no estudo da história, porque descortina mudanças ilusórias, revelando a manutenção cruel do status quo.
Por outro lado, é apenas fora da torre de observação acadêmica, com os pés no chão, que podemos ver que  mudanças só não acontecem quando não são feitas por nós.

A era da pulverização
Quem fala de sociedade e não pensa no velho Marx não tem juízo (nem coração). Quase duzentos anos depois de Marx, a despeito do esforço da tal da intelligentsia, o senso ordinário não abandonou a noção de classe, o capitalismo continua gerando desigualdade, alimentando tensões sociais e principalmente desenvolvendo-se dentro de contradições indissolúveis.

Entretanto, o hegeliano escatológico e universalista (e romântico?) Marx em seu século XIX não pôde prever que as os processos revolucionários em direção ao comunismo se desenvolvessem fora do eixo central do capitalismo. Também tropeçou ao contar com uma ideologia revolucionária de classe. Talvez porque o sistema capitalista tenha suas artimanhas, talvez porque as pessoas são menos solidárias do que se imaginou.

A segunda metade do século XX caracterizou-se pela conformação de movimentos cujos avatares sociais afastavam-se do tradicional ou oficial. Em detrimento da religião, nação e família, ou de uma "condição social" o elemento identitário estava fragmentado em pequenas esferas sociais, com destaque para a etnia, o gênero e a sexualidade, mas não restrita a eles. Estes grupos sociais, embora não excludentes entre si, possuem reivindicações bastante específicas. Determinados por ou determinantes de uma nova visão de Estado, poder e relações sociais, o palco destes novos agentes foi um mundo de poder diluído, de desejos restritivos e individualizantes e a ideologia dissipada. Embora, como observou Hobsbawm, a maior parte deles estivesse alinhada com ideologias de esquerda.

A ideologia de minorias
Tais minorias assim se caracterizam não porque sejam inexpressivas numericamente, mas porque almejam status e tratamento diferenciado.
Aparentemente, a (des)articulação social em minorias oferece vantagens: Na linguagem darwinista econômica, o sucesso é mesmo para os poucos. Nas entranhas das políticas estatais, você goza de vantagens por não se alinhar às coletividades.
Entretanto, ainda que não travestida de bandeira de luta, a tensão entre grupos sociais (complexamente) complementares e antagônicos não deixou de existir. Ela está manifesta no esfacelamento das instituições mantenedoras do status burguês, burladas pelas elites econômicas que manipulam o Estado, pelos discursos mercadológicos de ascenção social; ou  pelas camadas populares que solenemente ignoram o saber formal, canônico e elitista.
Isto é, evidentemente, existe opressão por parte dos detentores do capital por um lado, tanto quanto de outro há uma possibilidade latente de rebelião popular, cuja válvula de escape são as pequenas rebeldias de cada dia. Estas que dizem que há algo fora da ordem e que a ideologia dominante, na verdade, não domina e é confrontada a cada dia pela desobediência.

A situação revolucionária
Talvez eu seja a última romântica em perceber (ou forçar uma barra para ver) uma obscura consciência de classe ou um desejo inconsciente de mudança. 
Contudo, na onda da hipervalorização do indivíduo, é truísmo caracterizar grupos humanos por suas particularidades.
Ousado é enxergar e construir horizontes comuns, sem ser universalizante (e imperialista), aniquilar as diferenças que nos inferiorizam, sem anular aquelas que caracterizam nossa identidade.

A individualização, o egoísmo, a "ideologia de minorias", a diluição do poder em micro-esferas são virtuais, no sentido que são categorias analíticas mais que dados de realidade. Se estamos presos neste labirinto do sistema, é apenas porque nos sujeitamos a pertencer a minorias.

O problema aqui é que não há horizonte senão na associação e na coletividade. Mas também é que a transformação é uma ideia demodé.
Os pós-modernos continuam acertando muitos e tantos pontos. Mas se é para enxergar além e e caminhar adiante, o ponto vai para Marx.
E então, Vinícius, são encruzilhadas ou confluências? Como mudar o mundo se Foucault e Marx não fizerem as pazes?